Tinha chegado à India há quatro dias, três dos quais passados entre o quarto e a casa de banho com o estômago às voltas e a considerar se tinha sido boa idéia deixar tudo na Europa e aventurar-me sozinha pela India durante dez meses.
Ao quarto dia renasci, estava em Arambol, Goa, e a vontade de conhecer pessoas levou-me ao Sítio do Cookies. Deixei os sapatos à entrada, como em qualquer sítio em Arambol, e sentei-me confortavelmente nas almofadas no chão. Não foi difícil começar a meter conversa com as pessoas presentes e, passados alguns minutos, já trocava experiências e histórias com viajantes de todo o mundo que, como eu, deixaram o que conheciam para se conhecerem melhor. Naquele pequeno grupo estavam duas suecas, um australiano, dois alemães e um nepalês - o Cookies que, mais do que anfitrião, se tornou um amigo.
De todas as histórias que ouvi fiquei especialmente fascinada com a aventura do Johannes e do Nils. Dois alemães, 26 e 23 anos respectivamente, que resolveram dar a volta ao mundo em bicicleta. Partiram há um ano, do lago de Constance, na Alemanha, e durante um ano passaram pela Austria, Eslováquia, Hungria, Roménia, Bulgária, Grécia, Turquia, Georgia, Azerbeijão, Kazaquistão, Kyrguistão, Uzebequistão, China, Tibete e India. 15 países no total e até ao momento presente.
Vânia: Quantos países ainda vão ter de cruzar até completarem a volta ao mundo?
Johannes: Nao sei ao certo, mas há alguns países por onde iremos passar de certeza, como é o caso do Vietname, da Tailândia, da Malásia e da Indonésia. O meu irmão está a viver na Indonésia com a família, portanto conto ficar aí um ou dois meses. Depois, Papua Nova Guiné e Austrália. Se tudo correr como previsto encontramos um sítio na Austrália onde ficar e trabalhar e estabelecemo-nos por um ano. Necessitamos de ganhar o dinheiro que nos permitirá continuar a viagem.
Da Austrália para a América do Sul vamos tentar viajar de barco. Evitamos o avião sempre que possível visto ser um meio de transporte altamente poluente e não nos permitir sentir a mudança gradual do território.
Uma vez no continente americano vamos subir rumo ao Alasca, que será a última paragem antes de regressarmos à Europa. Provavelmente iremos do Alasca para Portugal de avião. Temos alguns amigos em Portugal que queremos visitar e assim terminamos a nossa rota com a travessia da Europa até à Alemanha, de regresso a casa.
V: Quanto tempo vão levar a completar a rota?
Nills: Provavelmente cinco ou seis anos.
V: E quanto tempo levaram a preparar esta viagem?
N: Dois anos no total. A idéia surgiu um ano antes de terminarmos os nossos estudos. Nessa altura andávamos a pensar muito na vida e no que iríamos fazer quando concluíssemos a formação de carpinteiros. Não queríamos ficar na Alemanha e começar a trabalhar logo de seguida. Viajar parecia a coisa certa a fazer. Depois de uma vida passada no local onde nascemos estávamos desejosos de conhecer o mundo com os nossos olhos.
A partir do momento em que tomámos essa decisão começámos a juntar dinheiro e a trabalhar nesse sentido. Assim que terminámos a escola passámos a trabalhar a tempo inteiro. Durante um ano trabalhámos e juntámos todo o dinheiro possível, primeiro como carpinteiros e nas últimas oito semanas numa fábrica. O trabalho foi duro, especialmente na fábrica, mas conseguimos juntar dinheiro para a viagem e para o equipamento, incluindo as bicicletas.
Só para que tenhas uma idéia, gastámos cada um 3.500 euros na viagem da Alemanha até ao Nepal, dez meses e meio. Portanto não é assim tanto se considerarmos a distância e o tempo que demorámos. Só o equipamento foi mais caro do que isso.
V: Conseguiram algum tipo de apoios para o equipamento?
J: Sim, conseguimos o apoio de seis empresas no total. Uma ofereceu-nos os relógios de mergulho em troca de fotografias. Outra ofereceu-nos a tenda em troca de fotografias e de uma reportagem que fizeram sobre a nossa história. As bússolas, que são das melhores que há no mercado, foram oferecidas por uma empresa suíça. E tudo isto porque enviámos centenas de emails para as mais variadas empresas. Em muitos casos não obtivemos qualquer tipo de resposta e quando nos respondiam era para dizer que já tinham esgotado os apoios disponíveis para esse ano ou que só apoiavam projectos de carácter social. Mas algumas responderam a manifestar o interesse em nos apoiar. Na altura não tínhamos nada para mostrar, nem fotografias, nem website, apenas o nosso projecto e a filosofia por detrás desta aventura.
V: E qual é a filosofia por detrás desta aventura de dar a volta ao mudo em bicicleta por tempo indeterminado?
N: Antes de mais sermos livres, não depender desta sociedade de consumo e de todos os confortos a que estamos habituados e partirmos à aventura, disponíveis para enfrentar as dificuldades que se atravessem no nosso caminho. Deixámos para trás os 64 canais de televisão, os 11 pares de sapatos, os telemóveis e o café depois do almoço. Deixámos para trás o porto seguro e remámos face ao desconhecido, para nos conhecermos melhor e nos pormos à prova.
V: Porque é que escolheram a bicicleta como meio de transporte?
N: A bicicleta é o meio de transporte ideal. Podemos viajar pela natureza sem a poluir e mantemo-nos saudáveis com o exercício que fazemos diariamente. Não necessitamos de guia nem de combustível, mas estamos muitas vezes dependentes da boa vontade das pessoas que encontramos no caminho. Por outro lado, a velocidade a que viajamos permite-nos progredir na rota com tempo para apreciar e integrar tudo aquilo porque passamos. Na nossa opinião o que interessa é vivenciar os locais e não passar por eles só para dizer que lá estivemos. Viajar de bicicleta também nos permite contactar muito mais com os locais. Muitas vezes fomos convidados a comer e a dormir em casa de pessoas com quem nos cruzávamos pelo caminho e deste modo ficámos a conhecer melhor os costumes e o modo de pensar dos povos, nas regiões por onde passámos.
V: Durante estes dez meses e meio de viagem de certeza que tiveram bons momentos mas também situações difíceis. Qual foi a situação mais difícil porque passaram?
J: Foi sem dúvida na Bulgária, quando passada hora e meia no cyber café reparámos que as nossas bicicletas tinham desaparecido. Ambos os cadeados partidos e nem sinal das bicicletas. Felizmente, tínhamos deixado a nossa bagagem em casa de um amigo.
Quando isto aconteceu fomos imediatamente à polícia onde preenchemos um sem número de formulários, e no dia seguinte fomos chamados a tribunal. Até chegámos a fazer um cartaz com a foto das bicicletas, a dizer " Desaparecidas" e a oferecer dinheiro a quem as trouxesse de volta. Mas não tivemos sorte nenhuma e apesar de nos custar muitíssimo regressar à Alemanha quando mal tínhamos começado a viagem, tivemos de o fazer. Regressámos a casa, voltámos a trabalhar na fábrica para poder comprar novas bicicletas e passados uns meses partimos de novo. Desta vez com os melhores cadeados que há no mercado, oferecidos pela concorrência da marca dos anteriores, em troca da história verídica do que nos tinha acontecido na Bulgária.
Esta foi a nossa prova de fogo.
V: E os bons momentos compensaram este penoso contratempo?
J: Sem dúvida alguma. Recordamos com especial carinho os dois dias em que descemos as montanhas do Tibete em direcção ao Nepal. Descemos dos 3.500 metros até aos 600 metros de altitude, em dois dias. Dos picos do Tibete, onde apanhámos ventos gélidos e tínhamos de usar casacos de Inverno e luvas, até ao Nepal, onde, depois de um dia e meio para atravessar a fronteira, não conseguíamos suportar mais nada para além de uma T-shirt e calções. E mesmo assim transpirávamos permanentemente naquele clima tropical e húmido. Os contrastes porque passámos nestes dois dias foram brutais.
Entrar no Nepal foi de facto especial, principalmente depois das dificuldades por que passámos antes de chegar à fronteira. As estradas em péssimas condições, cheias de pedregulhos e lama. Por duas vezes tivémos de atravessar riachos que cortavam a estrada sem aviso prévio, com as bicicletas e todo o equipamento às costas. Entretanto, tive um furo e fiquei para trás. Parava para encher o pneu a cada três quilómetros e depois de substituir a câmara de ar descobri que a nova também tinha um pequeno furo. Felizmente, se assim se pode dizer, já só tinha que encher o pneu de dez em dez quilómetros. Tudo isto em contra-relógio, porque o nosso visto estava praticamente a expirar e não sabíamos a que horas fechava a fronteira.
No Tibete, ao longo do caminho, encontrámos chineses a trabalhar nas estradas, sob ribanceiras, sem qualquer tipo de protecção e, muitas das vezes, a ter de usar o martelo pneumtico em situações extremamente arriscadas. Ficámos deveras impressionados com o perigo que estes homens corriam. Pareceu-nos, de repente, ter regressado à Idade Média.
Assim que entrámos no Nepal o cenário mudou completamente, a natureza era luxuriante, estávamos rodeados de pássaros e macacos. Entretanto, o facto de estarmos a menor altitude, com mais oxigénio disponível, também nos afectou e acentuou a sensação de termos entrado num outro mundo. Estes dois dias terminaram com um banho de água quente, no meio da natureza, numas nascentes no Nepal. O prazer ainda mais se acentuou porque já não tomávamos banho há duas semanas.
V: Sentem que esta viagem mudou de algum modo a vossa perspectiva do mundo e da vida?
J: Mudou-nos bastante porque nos deparámos com situações muito diferentes de tudo o que já tínhamos vivenciado. Andámos de bicicleta debaixo de sol abarasador, de chuva torrencial, com neve e com gelo. Quando viajamos de bicicleta estamos em permanente contacto com o meio, não há nada que nos separe ou proteja do que nos rodeia, sentimos a natureza em toda a sua intensidade. Depois, o facto de conhecermos tantas pessoas diferentes com quem trocámos experiências e opiniões ao longo do caminho também nos rasgou bastante os horizontes.
V: Continuam com a ideia de regressar à Alemanha para trabalharem como carpinteiros depois de terminarem esta aventura?
N: Não. Essa foi uma conclusão a que chegámos com esta viagem. Nenhum de nós quer vir a trabalhar na Alemanha nos tempos mais próximos. É demasiado “stressante”. A Alemanha é um bom país, principalmente no que diz respeito a obter uma boa educação, mas não é o país mais adequado para nós neste momento.
Claro que contamos regressar à Alemanha para rever família e amigos, mas não para ficar. Talvez o Canadá. Agrada-me o facto de os canadianos serem, simultaneamente, descontraídos e activos.
J: Mas a vida é uma viagem, com tudo em nosso redor em constante mudança, e nós vamos mudando também pelo caminho. Temos como objectivo concluir esta viagem à volta do mundo em bicicleta, e já fizemos uma parte do caminho, mas tudo pode acontecer e podemos ficar em qualquer ponto do caminho, se fizer sentido...
Preferimos deixar os planos em aberto e ir fazendo a viagem um dia a seguir ao outro, tirando dela o máximo partido.
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Que história impressionante e incentivante, Vânia.
ResponderEliminarDe facto a vida é uma viagem... ou muitas... fora... mas também dentro de nós.
Agradecida por partilhares esta conversa.
:-)